Declus

Tentando tapar os buracos na minha cabeça...
Mostrando postagens com marcador Declus. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Declus. Mostrar todas as postagens

sábado, junho 21, 2025

Sartre, aniversários e a dedicatória esquecida de 2007

 📅 21 de junho

No mesmo dia em que vim ao mundo, nasceu também Jean-Paul Sartre.
É possível — e provável — que essa seja a única coincidência relevante entre nós. Mas já é algo.
Ele, filósofo existencialista que escreveu para provocar, pensar e transformar.
Eu, um curioso que insiste em sublinhar livros, colecionar perguntas e escrever posts em datas simbólicas.

Hoje, no dia em que celebro mais um ano, decidi revisitar Sartre — não só pelo calendário, mas por aquele tipo de sincronia secreta que às vezes acontece entre a vida e os livros. E talvez também por uma dedicatória esquecida.


📚 Filósofo, escritor, dissidente — e relutante celebridade
Sartre não aceitava rótulos fáceis.
Se recusou ao Nobel de Literatura (“nenhum homem merece ser transformado em instituição viva”), escreveu peças, romances e tratados filosóficos — sempre tentando dissolver as barreiras entre teoria e prática, entre liberdade e responsabilidade.
Sua vida foi feita de escolhas radicais: recusou cátedras, preferiu panfletos à fama e viveu um amor livre (e controverso) com Simone de Beauvoir, sua parceira intelectual e afetiva.

Ler O Ser e o Nada exige fôlego. Ler A Náusea exige estômago. Mas há algo em Sartre que recompensa: ele não promete respostas — só o direito de fazer as perguntas certas.


📝 Aline, 2007, e um livro que esperava por mim
Há alguns anos, encontrei um exemplar usado de Entre Quatro Paredes, peça curta e brutal, que termina com a frase: “O inferno são os outros.”
Na primeira página, uma dedicatória:
“Para você, Aline. Que esses personagens te façam pensar. 06.2007”
A letra, torta. A tinta, já quase apagada.
E Aline, ao que tudo indica, se desfez do presente — ou o esqueceu em alguma mudança.

Hoje, esse livro está na minha estante.
E mesmo sem saber quem o escreveu, nem por que Aline o deixou, sinto que carrego uma espécie de missão: dar continuidade ao gesto interrompido. Ler o que foi oferecido. E passar adiante o que valer a pena.


🎂 O que fazer com o que a vida fez de nós?
Sartre acreditava que a existência precede a essência.
Que somos o que escolhemos ser — apesar do mundo, apesar dos outros, apesar de nós mesmos.
No dia do meu aniversário, essa ideia ressoa com força: não é sobre o que me aconteceu, mas sobre o que eu farei disso daqui em diante.

E por isso encerro com uma das frases que mais me acompanham:

"Não importa o que a vida fez de você, mas o que você faz com o que a vida fez de você."

Que ela sirva de presente.
Para mim, por estar aqui.
Para você, que me lê.
E para Aline — onde quer que esteja.

sexta-feira, junho 20, 2025

O Cordeiro: o evangelho irreverente (e comovente) de Biff

 

🐑 “Este é o evangelho segundo Biff, o melhor amigo de infância de Jesus.”

É assim que começa O Cordeiro, de Christopher Moore — e é nesse tom que ele segue: espirituoso, ousado, desconcertantemente comovente. Um livro que poderia ser apenas uma paródia, mas que é, na verdade, uma das homenagens mais sensíveis (e engraçadas) já feitas ao lado humano de uma figura sagrada.


👬 Jesus e Biff: uma amizade de carne e alma
Na narrativa, Levi — apelidado de Biff — é o amigo meio encrenqueiro, meio filósofo de rua, que acompanhou o Messias desde a infância. Enquanto Jesus (a quem Biff chama de Josh) tenta entender sua missão, Biff é quem questiona, provoca, reclama… e o segue mesmo quando não entende nada.
Eles viajam juntos pela Índia, China e Himalaias, aprendem com monges, magos, mercadores, prostitutas e um yeti. Isso mesmo: um yeti. Porque neste evangelho, o divino e o absurdo caminham lado a lado — e é justamente aí que está sua beleza.


📖 Rir sem blasfemar, sentir sem pregar
Moore não tenta “reescrever a Bíblia”. Ele imagina o que poderia ter havido nos anos em que os evangelhos oficiais silenciam. O faz com respeito e irreverência, ironia e ternura. Há piadas com anjos viciados em sabão, mas também reflexões sobre compaixão, escolhas difíceis e a solidão do sagrado.
O humor não zomba da fé — apenas ilumina seus cantos escuros com um candelabro de sarcasmo amoroso. O riso que Moore provoca não desvia da cruz: apenas lembra que, antes dela, houve abraços, tropeços e olhares perdidos em busca de sentido.


🙏 Entre o sagrado e o profano, um abraço possível
O livro é uma aula de equilíbrio. Consegue colocar no mesmo parágrafo uma piada sobre romanos e uma meditação sobre sacrifício. Não oferece dogmas nem pretensões teológicas — apenas uma história sobre amizade, busca e humanidade.
E talvez, no fundo, seja isso que um “evangelho” sempre tentou ser: uma boa nova. Mesmo que contada por Biff, o amigo boca suja e leal até o fim.


🎁 Por que ler “O Cordeiro” na véspera de fazer mais um ano de vida
Porque é uma lembrança de que crescer (ou envelhecer) não precisa ser sisudo. Que fé pode rimar com humor. Que reverência não exclui liberdade. E que é possível rir das nossas dúvidas sem perder o respeito por quem tenta respondê-las com amor.
Porque às vezes a maturidade chega junto com a gargalhada de um anjo que derrubou o shampoo no Céu.

quinta-feira, junho 19, 2025

Voltaire, cafés, prisões e um último passeio por Paris

 

“Se o café é veneno, ao menos é um veneno lento… e delicioso.”
Ninguém sabe se Voltaire disse exatamente assim, mas a lenda faz sentido: conta-se que ele bebia quarenta xícaras por dia, muitas delas turbinadas com chocolate. Entre goles apressados, o filósofo iluminista escrevia cartas ferinas, peças de teatro e tratados que fariam reis espumar de raiva — e leitores vibrarem de riso.


🏰 Da Bastilha ao banimento (e volta)
François-Marie Arouet, o Voltaire, nasceu em 1694 e logo aprendeu que palavras têm preço. Aos 23 anos, uma piada sobre o Regente lhe rendeu a primeira temporada na Bastilha. Ali, transformou a cela em gabinete literário e decidiu trocar o próprio sobrenome por um anagrama audacioso: Voltaire. Saiu da prisão mais famoso do que entrou, mas também vigiado para sempre.
Quando, anos depois, voltou a provocar nobres poderosos, ganhou de brinde a expulsão de Paris. Foi exilado para a Inglaterra, onde descobriu as liberdades do café londrino, devorou Locke, admirou Newton e aprendeu que a tolerância pode ser uma virtude política — não apenas cristã.


💡 O iluminista incendiário
De volta ao continente, Voltaire virou usina de ideias: poemas satíricos, tragédias gregas reimaginadas, panfletos contra o fanatismo religioso. Em parceria (e disputa amigável) com Diderot e d’Alembert, ajudou a fomentar a Enciclopédia, aquele audacioso Google do século XVIII que queria reunir todo o saber humano em prateleiras de papel.
Ele atacava a Igreja quando esta se confundia com tirania, mas também criticava filósofos de gabinete que ignoravam o povo. Seu lema oficioso — “Esmagai a infame!” — tinha endereço certo: a intolerância travestida de dogma.


🎲 O golpe de mestre na loteria do rei
Pouca gente lembra que Voltaire também foi matematicamente travesso. Em 1729, aliou-se a um amigo matemático para explorar uma falha nas regras da loteria estatal francesa: compraram bilhetes estratégicos, repartiram o prêmio astronômico e garantiram a independência financeira do filósofo. Moral da história? Às vezes a razão ilumina bolsos antes de iluminar mentes.


📚 Livros que cortam como espada

  • Cartas Filosóficas (1734): análise apaixonada da Inglaterra liberal; proibido na França.

  • Cândido (1759): sátira implacável ao otimismo ingênuo; leituras rápidas, reflexões longas.

  • Tratado sobre a Tolerância (1763): defesa de Jean Calas, protestante injustamente executado; um manifesto ainda atual.
    Cada obra traz a marca registrada de Voltaire: ironia rasgada, frases curtas, argumentos afiados.


⚖️ Entre cafeteiras e tribunais
Voltaire usava salões parisienses como plataformas de debate. Mas, expulso da capital, montou seu próprio “reino” em Ferney, na fronteira com a Suíça. Ali recebia visitantes, escrevia sem censura imediata e gerenciava a produção de relógios e sedas que enriqueciam a região. Liberdade também se cultiva com gestão pragmática.


🔍 O detalhe poético do fim
Em 1778, depois de quase trinta anos longe, Voltaire voltou a Paris para apresentar uma peça. Foi recebido como estrela pop: multidões na porta, condecorações, jantares. Morreu poucas semanas depois — dizem que entre páginas e canecas de café. Ironicamente, a Igreja proibiu o enterro em solo sagrado. Resultado: o corpo foi levado de contrabando, à noite, num coche coberto.
Treze anos mais tarde, já em plena Revolução, seus restos mortais desfilaram triunfalmente pelas ruas de Paris rumo ao Panteão. A cidade que o banira aclamou-o com tochas e música. A carroça fúnebre virou cortejo cívico: última gargalhada do velho satírico.


❤️ Por que eu dividiria uma xícara com Voltaire
Porque ele unia sarcasmo e ternura. Sabia que rir de reis e padres era, antes de tudo, um gesto de esperança. Porque defendia a dúvida como passatempo nobre, a liberdade como espuma de café obrigatória. E porque, mesmo milionário de loteria, não parou de cutucar o poder — “escrever é agir”, dizia. Entre goles de arábica, acho que trocaríamos deboches sobre algoritmos modernos, fanatismos reciclados, loterias criptográficas… e talvez ele me lembrasse: “Se o café não acordar sua razão, nada mais acordará.”

📌 Post Extra — O Dragão na Garagem e o Olho do Ceará

  Meu pai, que saiu do Ceará aos 18 e hoje já passou dos 70, gosta de contar histórias do sertão. Uma delas reapareceu na sala esses dias, ...