O Dia do Curinga — Um livro que esconde mais do que revela
Entre os muitos livros que marcaram minha trajetória como leitor, há um que volta e meia retorna à minha memória como uma espécie de enigma reconfortante. Pouco falado, muitas vezes esquecido em meio ao sucesso de O Mundo de Sofia, O Dia do Curinga, de Jostein Gaarder, é um daqueles livros que não apenas contam uma história — eles nos convidam a pensar sobre a própria experiência de existir.
Uma viagem externa... e interna
Na superfície, O Dia do Curinga é uma história de viagem. Hans Thomas, um garoto norueguês, parte com seu pai para a Grécia em busca da mãe, que os deixou anos antes. Mas essa estrada física logo se transforma em um caminho muito mais profundo, quando ele recebe uma lupa mágica e um misterioso livro em miniatura escondido dentro de um pãozinho.
A narrativa se divide então em dois planos: o da jornada real com o pai, permeada por conversas sobre filosofia e destino, e a história fantástica que ele lê em segredo, sobre uma ilha mágica onde cartas de baralho ganham vida.
Por que o curingão?
O título já nos joga no centro da metáfora: o Curinga é a carta que não se encaixa nas regras do jogo. Ele não pertence a nenhum naipe, não tem número fixo, e por isso mesmo, pode ser qualquer coisa. Ou seja, ele representa o humano — com sua liberdade, imprevisibilidade, e, acima de tudo, sua consciência.
Na história da ilha, os habitantes vivem conforme suas funções — damas, reis, valetes — e apenas o Curinga tem a estranha capacidade de se dar conta do jogo. Ele é o que observa, o que pensa, o que se pergunta “por que estou aqui?” — algo tão profundamente humano que chega a incomodar.
Uma leitura que muda com o tempo
Li esse livro pela primeira vez há anos, e recentemente voltei a folhear suas páginas. A sensação foi parecida com a de rever um velho amigo: ele continua o mesmo, mas eu mudei. E por isso, o livro também mudou.
Na juventude, é fácil se identificar com Hans Thomas e suas descobertas. Depois de adulto, é o pai quem ganha nova dimensão: um homem falho, perdido em suas próprias questões filosóficas, tentando ser guia enquanto ainda busca respostas.
E por trás de tudo isso, a grande pergunta: somos peças de um jogo? Ou jogadores iludidos? O Curinga, com seu sorriso meio triste, parece nos observar sem dar respostas.
Um livro que me acompanha... e aproxima
Pra mim, O Dia do Curinga não é apenas uma boa leitura — é um dos livros que mais amo. Já comprei exemplares cinco ou seis vezes, quase sempre para dar de presente. Em parte, para espalhar essa pequena joia filosófica; em parte, porque vez ou outra acabo dando a última cópia que tinha e logo preciso de outra.
Aliás, não faz muito tempo, comecei uma conversa com uma nova colega de trabalho — recém-chegada, quase desconhecida. O assunto acabou descambando para Noruega, literatura... e Jostein Gaarder. Soltei, quase num desafio: “Qual é o melhor livro dele?” E ela, sem hesitar: “Claro que é O Dia do Curinga.” Naquele instante, nasceu uma ótima amizade.
O livro tem esse poder: ele cria pontes silenciosas entre pessoas que enxergam o mundo com olhos curiosos.
Um convite à desprogramação
Jostein Gaarder faz algo raro: ele insere filosofia num romance sem soar forçado. Ele provoca a reflexão sem pregar. Ao terminar O Dia do Curinga, fica difícil não se perguntar: será que eu também sou uma carta num baralho? E se for… sou um ás, um dois de paus ou um curingão?
Mais do que buscar respostas, talvez o importante seja não esquecer de fazer as perguntas.
Se você ainda não leu...
Leia. Mesmo que já esteja "crescido demais para livros infantojuvenis". Aliás, especialmente se estiver. Porque esse não é um livro sobre baralhos, nem sobre pães mágicos. É um livro sobre o espanto de estar vivo.
E se por acaso você já leu, talvez valha reler. Quem sabe agora você perceba novas pistas escondidas naquele baralho filosófico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário